“UM BOM PAR DE SAPATOS E UM
CADERNO DE ANATAÇÕES” (I)
Jeremias Macário Como fazer uma reportagemUma viagem ao inferno dos deportados, dos condenados a trabalhos forçados, dos carcereiros, dos colonos e dos camponeses foi feita pelo médico e escritor Anton Tchékhov aos 30 anos à ilha Sacalina, na Sibéria Oriental, em 1890, durante o império russo tzarista.
O recenseamento dos habitantes do local foi um pretexto que o autor aventureiro encontrou para realizar seu objetivo maior de escrever o livro “A Ilha de Sacalina”, do qual o prefaciador Piero Brunello fez uma seleção de textos que gerou “Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações” - Como Fazer uma Reportagem.
Como está explícito no subtítulo, o livro da editora Martins deve ser uma leitura de constante aprendizagem para estudantes de jornalismo, profissionais e pessoas interessadas no assunto porque oferece valiosas dicas e passos importantes de como observar os locais; tratar as fontes; e fazer uma entrevista para conseguir uma boa reportagem jornalística.
Com o avanço tecnológico e o advento da internet, o título poderia ser atualizado para “Um Bom Par de Sapatos e um Gravador com uma Máquina Fotográfica”, se bem que ainda gosto do caderno de anotações. O conteúdo do livro permaneceria o mesmo.
O jornalista para ser um bom repórter tem que gastar sola de sapato e não ficar enfurnado numa redação durante todo tempo diante de uma tela de computar usando aplicativos e e-mails para fazer uma reportagem. Tem que ser cético como Tchékhov. Para ele tudo era matéria e que fora dela não há verdade. O escritor Tolstói certa vez o definiu como ateu absoluto, mas excelente pessoa.
Tchékhov em seus trabalhos definia o escritor não como um confeiteiro, mas como um repórter e perguntava: O que você diria de um repórter que por repulsa ou pelo desejo de satisfazer os leitores, descrevesse apenas prefeitos honestos, damas sublimes e ferroviários virtuosos? A indagação ainda é atual aos tempos de hoje.
Em sua visão, um escritor deve retratar a vida tal como ela é na realidade, sabendo que as paixões más são tão inerentes à vida quanto as boas. Nelson Rodrigues com suas crônicas polêmicas que causaram escândalos na época deve ter bebido da fonte do russo-ucraniano.
Numa comparação como médico disse sobre si mesmo que a medicina era sua esposa legítima e a literatura sua amante. “Tanto a anatomia como as letras têm a mesma origem nobre, os mesmo fins e o mesmo inimigo: o demônio, e não há razão nenhuma para se desligarem”.
Em sua viagem por Sacalina atentou para as questões do meio ambiente e não poupou críticas à depredação da natureza com a chegada dos primeiros colonos e deportado. “As florestas não param de diminuir, os rios secam, os animais silvestres desapareceram, o clima piorou e a cada dia a terra torna-se cada vez mais pobre e mais árida”. São palavras ditas por um médico naquela época, final do século XIX.
O livro é um poço de poesia e transborda quando o autor escreve esta oração dedicada à natureza: “Quando ouço farfalhar o jovem bosque, que plantei com minhas próprias mãos, sinto que tenho algum poder sobre a bondade do clima e que se daqui a mil anos o homem for feliz, terei contribuído um pouquinho para isso”.
A VIAGEM AO INFERNO